No Caminho do Bom Samaritano — lições do deserto da Judeia
No Caminho do Bom Samaritano — lições do deserto da Judeia

No Caminho do Bom Samaritano — lições do deserto da Judeia

Introdução — quando o texto bíblico ganha paisagem

Neste longos anos vivendo na Terra Santa, não foram poucas as minhas jornadas no Deserto da Judéia. Andar no caminho antigo, estreito e sinuoso, à beira do riacho Prat, no deserto da Judeia, não é apenas uma experiência física — é mergulhar no pano de fundo vivo da parábola do Bom Samaritano. Cada pedra, cada sombra de árvore, cada curva escondida do vale parece ecoar a história contada por Jesus.
Aquele trecho de Nahal Prat (Wadi Qelt) é um contraste de riscos e provisão: um caminho perigoso, mas com água corrente, árvores silvestres que dão frutinhas e sombra. É estreito, sinuoso e cheio de pontos onde um assaltante poderia se esconder. Mas, ao mesmo tempo, nele há vida e sustento — a possibilidade de seguir sem carregar grandes mantimentos, desde que se conheça o terreno e se aceite o risco.

Já o caminho romano, no alto das montanhas, era espaçoso, pensado para a passagem de exércitos, reis e mercadores abastados. Nele não havia água natural; os viajantes precisavam carregar tudo o que iriam consumir, pagando por hospedagem, comida e abrigo. A arqueologia já confirmou a existência de mais de 20 hospedarias ao longo dessa rota, evidenciando que esse caminho estava estruturado para quem tinha recursos financeiros. Sem “mamon” — no sentido literal de provisão monetária — não havia como sobreviver nele.

A parábola de Jesus, ao situar a cena na estrada de Jerusalém a Jericó, toca esse contraste. O sacerdote e o levita que “passaram de largo” provavelmente escolheram manter distância do homem caído para não se contaminarem — mas ao fazê-lo, arriscaram-se nas margens perigosas do caminho. Já o samaritano, possivelmente usando a rota mais baixa para economizar, decide parar, ajudar e investir de si mesmo. Ele não deu das sobras — deu do que lhe custava caro.

Texto bíblico — Lucas 10:25–37
Português (ARA):

25 E eis que certo doutor da lei se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna?
26 Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito na Lei? Como interpretas?
27 A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
28 Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isso e viverás.
29 Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo?
30 Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semi-morto.
31 Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo.
32 Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo.
33 Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele.
34 E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele.
35 No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem; e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar.
36 Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?
37 Respondeu-lhe o intérprete da lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo.

Hebraico (NT tradução hebraica moderna):

וְהִנֵּה, סוֹפֵר אֶחָד עָמַד לְנַסּוֹתוֹ, וְאָמַר: “מוֹרִי, מָה אֶעֱשֶׂה לְמַעַן אִירַשׁ חַיֵּי עוֹלָם?”
וַיֹּאמֶר אֵלָיו: “מַה כָּתוּב בַּתּוֹרָה? אֵיךְ אַתָּה קוֹרֵא?”
וַיַּעַן וַיֹּאמֶר: “וְאָהַבְתָּ אֵת יְהוָה אֱלֹהֶיךָ בְּכָל לְבָבְךָ, וּבְכָל נַפְשְׁךָ, וּבְכָל מְאֹדֶךָ, וּבְכָל מַדָּעֶךָ; וְאֵת רֵעֲךָ כָּמוֹךָ.”
וַיֹּאמֶר לוֹ: “יָפֶה עָנִיתָ; עֲשֵׂה זֹאת וִחְיֵה.”
וְהוּא, רוֹצֶה לְהִצְטַדֵּק, אָמַר אֶל יֵשׁוּעַ: “וּמִי הוּא רֵעִי?”
וַיַּעַן יֵשׁוּעַ וַיֹּאמֶר: “אִישׁ אֶחָד יָרַד מִירוּשָׁלַיִם לִירֵחוֹ, וְנָפַל בְּיַדֵּי לוֹסִים; וְאַחֲרֵי שֶׁפָּשְׁטוּ אוֹתוֹ וְהִכּוּהוּ, הִנִּיחֻהוּ חֲצִי-מֵת וַיֵּלֵכוּ לָהֶם.
וּמִקְרֶה, כֹּהֵן אֶחָד יָרַד בַּדֶּרֶךְ הַהִיא, וְרָאָהוּ וַיַּעֲבֹר מִנֶּגֶד.
וְכֵן, לֵוִי, בָּא אֶל הַמָּקוֹם, רָאָה וְעָבַר מִנֶּגֶד.
וְשֹׁמְרוֹנִי אֶחָד, הָלוֹךְ בַּדֶּרֶךְ, בָּא אֵלָיו; וְכִרְאוֹתוֹ רִחֵם עָלָיו.
וַיִּגַּשׁ, חָבַשׁ אֶת פְּצָעָיו, יָצַק עֲלֵיהֶם שֶׁמֶן וָיַיִן, וְהֶעֱלָהוּ עַל בְּהֶמְתּוֹ; וַיְבִיאֵהוּ אֶל מָלוֹן, וְדָאַג לוֹ.
וּלְמָחֳרָת, הוֹצִיא שְׁנֵי דִּינָרִים וְנָתַן לַמְלוֹנַאי, וַיֹּאמֶר לוֹ: ‘טְפֹּל בּוֹ, וְכָל מַה שֶּׁתּוֹסִיף, אֲנִי אֲשַׁלֵּם לְךָ בְּשׁוּבִי.’
מִי מִשְּׁלֹשָׁה אֵלֶּה נִדְמֶה לְךָ שֶׁהָיָה רֵעַ לָאִישׁ שֶׁנָּפַל בְּיַד הַלּוֹסִים?”
וַיֹּאמֶר: “הָעוֹשֶׂה עִמּוֹ חָסֶד.”
אָמַר לוֹ יֵשׁוּעַ: “לֵךְ וַעֲשֵׂה כֵן גַּם אַתָּה.”

1. O contexto histórico-geográfico

A descida e subida de Jerusalém para Jericó tem mais de mil metros de diferença de altitude, cortando um relevo acidentado e árido. Essa estrada era conhecida como perigosa, por sua solidão e por ser rota frequente de salteadores.
No vale, o caminho junto ao riacho Prat oferecia um recurso vital — água — e alguma vegetação, mas também exigia atenção constante. Era estreito, ladeado por rochas, com passagens que obrigavam um viajante a seguir em fila indiana.

O caminho romano, mais acima, era amplo, pavimentado e direto, mas seco. Seu uso dependia de planejamento: levar água suficiente, pagar por pousadas e comprar alimento pelo trajeto. Era a escolha lógica para quem tinha recursos, segurança armada ou estava em deslocamento oficial. O número de hospedarias encontradas nas escavações mostra que havia uma rede econômica ativa nessa rota, mas inacessível para viajantes pobres.

Assim, já no cenário físico, temos um pano de fundo simbólico:

  • O caminho estreito: mais arriscado, mas com sustento gratuito dado por Deus através de sua natureza — dependência direta de Deus.
  • O caminho largo: mais seguro fisicamente, mas dependente de dinheiro e estrutura humana — dependência direta de recursos próprios.

2. A parábola na paisagem real

Na história contada por Jesus, “um homem descia de Jerusalém a Jericó” e foi atacado por salteadores, ficando ferido e meio morto. Um sacerdote passou, viu e passou de largo; um levita fez o mesmo. Mas um samaritano, ao ver o homem, teve compaixão: cuidou das feridas com óleo e vinho, colocou-o sobre seu animal, levou-o a uma hospedaria e pagou pelos cuidados, prometendo cobrir qualquer custo extra ao voltar.

Com o cenário em mente, cada detalhe ganha nova força:

  • Passar de largo não significa apenas mudar de calçada; no caminho estreito, poderia significar arriscar-se a subir ou descer ladeiras perigosas para evitar o contato.
  • Levar à hospedaria implica muito esforço, além de entrar no caminho romano, uma subida complicada, e perigosa, carregando um homem ferido por longos trechos de subida.
  • Pagar os custos, e os custos futuros exige fé: o bom samaritano provavelmente estava indo negociar em Jerusalém e confiou que, ao voltar, teria condições de honrar o compromisso.

3. Por que o sacerdote e o levita evitaram?

As leis de pureza ritual proibiam contato com cadáveres, especialmente para sacerdotes e levitas, sob pena de ficarem temporariamente incapacitados para o serviço no Templo. Ao ver um homem aparentemente morto, eles escolheram preservar sua função — e, talvez, sua própria segurança.
Jesus, porém, inverte a lógica: preservar a função religiosa não é desculpa para negligenciar a vida. A religião que deixa o ferido no chão perdeu seu sentido.

4. O bom samaritano — fé, custo e amor prático

O bom samaritano não agiu a partir de excedentes. Ele investiu recursos imediatos (óleo, vinho, curativos), trabalho físico pesado (erguer e carregar o ferido), tempo (interromper a própria viagem) e crédito (promessa de pagamento posterior). Ele demonstra o que Jesus exige: ajudar do que custa, não apenas da sobra.
Esse amor prático é o mesmo princípio que aparece em outras falas de Jesus: o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas; o convite a dar de beber, vestir, visitar — não como um extra opcional, mas como expressão essencial do Reino.

5. Lições espirituais a partir do caminho

Do contraste entre o vale e a estrada alta, podemos extrair metáforas espirituais:

  • Seguir no caminho estreito com provisão de Deus: vida que depende da água viva e do sustento que Ele provê, mas que enfrenta perigos constantes — exige vigilância e coragem.
  • Seguir pelo caminho largo com recursos próprios: vida segura pela estrutura, mas seca espiritualmente; sem água viva, tudo depende de provisões humanas.
  • O chamado do bom samaritano: independente do caminho que estejamos trilhando, o discipulado exige disposição de descer ao nível do necessitado, carregar seu peso e arcar com o custo.

6. Aplicações práticas para hoje

  • Compromisso real com o próximo: ajudar de forma que doa, que mexa na agenda, no bolso e no conforto.
  • Preparação para agir: comunidades devem ter planos, recursos e treinamento para socorro imediato, físico e espiritual.
  • Revisão das prioridades religiosas: quando protocolos impedem misericórdia, é hora de reavaliar.
  • Disposição para sustentar além do momento: como o samaritano, manter compromisso até que a recuperação seja completa.

7. A ascensão da compaixão

O caminho do bom samaritano é também o caminho de Yeshua: descer até o ferido, erguer, carregar e sustentar. É o amor que sobe encostas pesadas, que transpõe a diferença entre o vale e o topo, que não mede o custo.
A paisagem da Judeia nos lembra que o discipulado é concreto: pedras, calor, suor, risco e investimento real. Jesus termina a parábola com um imperativo simples: “Vai e faze o mesmo.”


Referências e Notas

  1. Lucas 10:25–37 — Parábola do Bom Samaritano.
  2. Mateus 25:31–46 — O juízo final e a prática do amor.
  3. João 10:11 — O bom pastor que dá a vida pelas ovelhas.
  4. Levítico 21:1–3 — Regras sobre pureza e contato com mortos.
  5. Contexto geográfico: Nahal Prat / Wadi Qelt — vale com fonte de água e vegetação, rota histórica na Judeia.
  6. Contexto histórico: Estrada romana de Jerusalém a Jericó (Ascent of Adummim), via elevada, pavimentada e ampla, usada para transporte militar e caravanas.
  7. Achados arqueológicos: mais de 20 hospedarias identificadas ao longo da rota romana entre Jerusalém e Jericó, confirmando seu uso intensivo por viajantes abastados.
  8. Diferença de altitude entre Jerusalém (c. 800 m acima do nível do mar) e Jericó (c. 250 m abaixo do nível do mar) — mais de 1.000 metros de variação.